Web Summit, designers e tomates: uma péssima escolha

Ana Coli
4 min readDec 5, 2020

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Nesta sexta-feira, 4 de dezembro, terminou o Web Summit 2020, evento de tecnologia e negócios sediado em Portugal que, por motivos óbvios, foi totalmente online nesta edição. Como é de praxe nesse tipo conferência, o gigantismo se mostrou também no line up, com a “presença” de personalidades como Jane Goodall, Jessica Alba, Malala Yousafzai, Nile Rodgers e Serena Williams, além de todas as estrelas do mundo da tecnologia, claro.

Entre tantos temas interessantes para escolher, distribuídos em cinco diferentes “salas”, o que mais me chamou a atenção foi a interface dos vídeos: todos os usuários podiam interagir durante as discussões comentando no chat ou com as seguintes reações: joinha, aplauso, fogo, coração, bandeira de Portugal, risada, tomate e dedão pra baixo. Sim, basicamente, caso você estivesse insatisfeito, podia jogar tomates virtuais no palco também virtual do Web Summit. Por que não mudar de sala simplesmente ao invés de optar por ofender os palestrantes? Jamais saberemos.

Descrição da imagem: tela do site Web Summit 2020, com as reações joinha, aplauso, fogo, coração, bandeira de Portugal, risada, tomate e dedão pra baixo no vídeo

Confesso que na primeira olhada a ideia não me incomodou porque eu estava vendo a conferência pelo aplicativo, onde as reações não apareciam. Entretanto, o app estava instável primeiro dia, o que me fez mudar para o notebook. E aí bastou que eu começasse a assistir aos paineis para que a minha atenção fosse totalmente desviada para os tomates e “thumbs down” sendo atirados nos palestrantes. Mesmo com a quase totalidade das falas sendo pré-gravadas, as reações pulando na tela eram de uma agressividade incômoda.

Não demorou muito para chegarmos a um painel em que as reações estavam muito mais exageradas e eu desconfiei que tinha algo mais ali. O encontro que procurava debater o que era preciso para se começar um embate radical contra a injustiça sistêmica se chamava “Silence = violence”. Sim, seus quatro participantes eram negros, entre eles, o músico Femi Kuti, filho do lendário Fela Kuti, e o jornalista de direitos humanos Siyabulela Mandela, neto de ninguém menos que Nelson Mandela. Dito e feito, fui dar uma checada no chat e foi só decepção e revolta com os comentários.

Não consegui mais ver palestra nenhuma, o sangue subiu e fui procurar um jeito de me comunicar com a organização do evento. Para participar do Web Summit, todos aceitaram um código de conduta, chamado por eles de “Anti-harassment policy”. O que eu não conseguia entender de jeito nenhum e não saía da minha cabeça:

  • Por que um evento que se preocupa em fazer uma política antiassédio implementa uma funcionalidade que estimula justamente essa prática?
  • Isso é uma solução de design. Em algum momento, um designer participou dessa construção. Pode ser que a ideia não tenha vindo dele, mas, no fim do dia, quem desenhou uma interação destinada à opressão e à humilhação do outro foi um designer.
  • Ninguém levantou a mão para alertar que mulheres, pessoas negras ou de países periféricos poderiam ser atacadas? A diversidade, uma das pautas principais do evento, faltou nas equipes que produziram o site e organizaram a conferência?

Qualquer um que trabalha com tecnologia já reparou que a maioria das redes sociais opta só por reações positivas — é o caso de LinkedIn, Twitter, Instagram e TikTok. Entre os que têm uma interação negativa, só lembro agora do YouTube e o seu “thumb down”, adotado também por alguns portais de notícia do País. No Facebook, a risada muitas vezes é usada de maneira depreciativa (entre em qualquer notícia sobre direitos humanos e confirme o que eu estou dizendo), mas o ponto é: ela não foi criada pra isso. E ela é usada nos dois sentido, bom e mau. Já a reação de raiva, mesmo sendo negativa, é utilizada geralmente para se concordar com o sentimento de quem fez alguma postagem revoltada na rede e não para ofender o autor da mensagem.

Acredito que outras pessoas também se incomodaram com a agressividade das interações no site do Web Summit — cheguei a ver alguns comentários no chat do evento. O fato é que, a partir do segundo dia, os tomates e thumbs down desapareceram, para meu alívio.

Descrição da imagem: tela do site Web Summit 2020, agora somente com as reações joinha, aplauso, fogo, coração, bandeira de Portugal e risada no vídeo

Mas a indignação persiste: o mundo da tecnologia é sim esse lugar superelitista, branco, masculino e eurocêntrico, e eu, cercada pela minha bolha de privilégios, fui confrontada com a dura realidade. Só que essa realidade, como disse uma companheira portuguesa no chat da conferência, está mudando e não tem volta. Eles que lidem com isso.

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Ana Coli

Ex-jornalista, ex-arquiteta de informação, ex-pesquisadora, ex-UXer, ex-empresária, ex-organizadora de evento. E ainda um pouco disso tudo.